quarta-feira, 26 de maio de 2010

EM TOM PASTEL

História de quarta.


Em tom pastel

Nosso ônibus seguia rumo à Picos no Piauí, tudo ao redor era um borrão em não mais que meia dúzia de cores, insuportavelmente semelhantes, que nunca eram mais escuras que o marrom e nunca mais claras que o bege, nunca mais vivas que um pálido e desbotado barro sem cor.

Um pneu furado, uma parada.

Quarenta cristãos indo para um congresso cristão parados entre o “nada” do sertão nordestino e o “coisa nenhuma” do interior do Brasil.

Um único abrigo, o mesmo bendito ônibus.

Calor, sol, calor, sede, calor, Piauí! Janelas fechadas: mais calor, janelas abertas: terra na cara.

Passo à passo as maldições e pragas, evoluíam:

- Maldito pneu!
- Que sede do cão!
- Motorista burro!
- Estrada infeliz!
- Governo miserável!
- Terra quente dos infernos!

Pela seqüência Deus seria o próximo a ser citado, preferi descer do ônibus antes disso.

Sentado no chão do acostamento à meia sombra do ônibus, sozinho era melhor que mal acompanhado,

“Quarenta cristãos sem água podem ser muito mais desagradáveis do que dois ateus sem cerveja”


Foi ali, sentado naquele chão encardido de terra amarelada que vi o vulto se aproximando. Era bege!

Trazia uma criança magra e amarela de terra no braço esquerdo, uma trouxa pendurada e amarela no ombro direito e um balde marrom milagrosamente equilibrado em sua cabeça, vinha andando a uns cinqüenta metros de distância, na direção do ônibus.

Era magra, pequena e quase invisível por ser da mesma cor do restante da paisagem, mesmo sem o vento (inexistente no Piauí), os panos que lhe cobriam o corpo lhe colavam em sua pele e ossos, caminhava rápido, como convém aos que não têm pressa, e nem aonde ir, seus passos eram longos, elegantes e firmes pro seu tamanho, com a aproximação sua aparente fragilidade ia transformando-se em um “que” de dignidade e um muito de “realeza”, sabe Deus herdado de onde...


Sua pele parecia marrom, mais escura que a terra que pisava, um nada mais claro que seu cabelo liso e duro de tanto absorver essa mesma terra.

A criança em seu braço era morena, não como ela de sol, mas como brasileiro, criança mulata, mais negra que branca, coberto de pó parecia da cor do Piauí, de cabelos encaracolados quase crespos como de um africano, dourados como os de um europeu, olhos amarelos, nem verdes nem castanhos, amarelos.

Do balde na cabeça daquele vulto respingava ou escorria um pouco de água rara ali naquela savana americana, molhava à ela e à criança e imaginei que aquilo aliviasse o calor que sentiam.


Duas jovens cristãs desceram do ônibus, com suas garrafas plásticas de refrigerante, seus fones de ouvido e seus pacotes de bolacha recheada, falaram comigo, não ouvi.

Eu via o vulto.

A poucos metros de mim pude ver mais detalhes do seu rosto, rugas e marcas profundas lhe imputavam uma idade que não tinha, poderia passar por uma senhora de cinqüenta anos, mas certamente ainda não chegara aos vinte e cinco.

Seus olhos se ergueram.

E daquele mar em tom pastel, daquele infinito marrom e bege que é o Piauí emergiram dois brilhantes e fortíssimos olhos verdes, verdes como esmeraldas, como jades brilhantes, verdes como o mar mais lindo, verde como o verde deve ser em sonhos...


Olhou-me nos olhos como quem olha um réu, me senti um réu.


As adolescentes praguejavam do meu lado, contra o calor, contra a distância, contra a falta do que fazer, contra o CD de música baiana que não trouxeram , contra o lugar.

Os ouvidos daquela mulher captaram isso, sem que seu passo se alterasse, sem que seus olhos se desviassem dos meus, aliás, seus olhos, foram as únicas coisas que se alteraram ali.

Embruteceram-se ainda mais!

Seus olhos eram agora um só com aquele vento escaldante, com o reflexo do sol na terra que nos cegava, com o pó que me enchia as narinas, eu não era mais o réu, era o condenado.

As esmeraldas que me julgaram me imputaram toda culpa de todos os séculos de miséria do sertão nordestino, furtado, roubado e estuprado por europeus, não europeus e brasileiros pseudo-europeus, todos os governos corruptos, todos os cristãos charlatões que já venderam salvações e todos os pedófilos de bata, eu era culpado por todos os filhos que partiram daquela terra pra morrer no sudeste do país humilhados por um povo pior que o nosso.

Mas não foi o que aqueles olhos disseram o que me matou, não foi o “falar” silencioso, foi o “calar” ensurdecedor.

Foi o fechar das cortinas, o apagar das luzes, ao baixar aqueles olhos e seguir seu caminho foi que ela me disse o mais doído de tudo.

A resignação dolorosa de uma cabeça baixa, de quem não tem mais forças pra lutar.

A cabeça baixa de uma vergonha que não era dela por uma pobreza que não causara.

Foi isso que falou em meu coração:

- Você com sua ciência e sua consciência ecológica, com sua religião e seu Lutero, com sua “luta” e seu Karl Marx, você com seus textos, seus livros e sua faculdade, você nunca vai entender o que estes pés rachados e este balde significam.


As jovens agora riam alto de algo que não tinha a menor idéia do que poderia ser, jogavam plásticos no chão marrom e me ocorreu a triste consciência de que elas se quer estavam percebendo a passagem daquele vulto.


Atrás dela, do vulto, um vulto menor caminhava, acanhado e escondido, semelhante uma miniatura da primeira, olhos verdes, cabelos longos lisos e duros, roupas ou melhor dizendo, panos, olhou os vistosos plásticos de bolachas recheadas no chão, vazios, tentou esticar os braços para pegar.

Uma breve alteração no caminhar daquela mãe que percebeu a intenção da filha sem olhar para trás e um fulminante ralhar entre os dentes que poderia se comparar à um rosnado, a fizeram desistir inquestionavelmente.

Eram pobres aos olhos de todos, mas não precisavam ser miseráveis perante ninguém. Seguiram seu caminho com a menina olhando para trás, talvez marcando o local onde estavam os plásticos, quem sabe amanhã?


Minutos depois os motoristas concluíram a troca do pneu e seguimos viagem em junho de 1999.


Pergunto-me: Que é dessa gente? Que é desse sertão? Que é daquele grupo de quarenta cristãos?

Que é desse menino de colo? Dessa menina magrinha tentando pegar plásticos coloridos?

Que é daquele vulto sem idade?

Andando ainda como zumbis com roupas cobertas de terra bege? Ou cobertos definitivamente de terra? No mesmo mar marrom onde sofreram a vida a sofrer a morte?


Onze anos depois ainda me dói saber que minha ciência, minha religião, meu ideal político nunca vão entender o que são três vultos em tom pastel num mar sem cor, no meio do nada do Brasil.

Fabiano Soares

Saoluis-maranhao@hotmail.com