sábado, 3 de julho de 2010

Julgamento do Assassino de Dorothy Stang

Gostaria de começar este relatório fazendo uma pergunta que passou pela cabeça de muitos dos meus colegas de viagem:

- O que um Luterano está fazendo aqui?

Pra esclarecer melhor as coisas a todos, quero primeiro esclarecer do que estamos falando.

No último culto celebrado em nossa comunidade, no dia 25 de Abril, a nossa Pastora: Franciele Sander perguntou qual de nós, estaria disponível para acompanhar o julgamento do mandante do assassinato da missionária cristã Dorothy Stang, homicídio tragicamente ocorrido no sul do Pará, na cidade de Anapú em 2005.

A viagem se daria em caravana com as irmãs de Notre Damme na noite de quinta-feira dia 29 e o julgamento na sexta, 30 de abril.

Empolgado com a possibilidade da viagem me prontifiquei a ir.

Voltamos então à pergunta que passava pela cabeça de muitos que viajavam comigo e outros tantos que conheci por lá, vindos de diversas regiões do norte e nordeste do país:

- O que um Luterano está fazendo aqui?


Gostaria de começar a responder com alguns versos de Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta marxista alemão.

Primeiro levaram os comunistas
Mas não me importei com isso, Eu não era comunista

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso, Eu também não era operário

Depois prenderam os sindicalistas
Mas não me importei com isso, Porque eu nunca fui sindicalista

Depois agarraram uns sacerdotes
Mas como não sou religioso, Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde. Agora estão me levando, Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.


Essa é apenas a primeira parte da importante resposta que devemos dar ao mundo como cristãos, e que eu devo dar como cristão luterano, Brecht nos diz em seus versos que defender os direitos dos outros é garantir que os seus próprios direitos não sejam desrespeitados pelos poderosos ou pelos usurpadores do poder, logo, lutar pelo cumprimento da justiça no caso Dorothy foi lutar pela paz no nosso país, lutar por nossos filhos, lutar por nosso povo.

E isso é apenas uma das coisas que um luterano fazia ali.

Mesmo com o atraso muitos de nós representantes da caravana do Maranhão, bem como os luteranos de Belém, conseguimos entrar no plenário do Júri, dessa forma me senti representado e abdiquei da disputa por uma vaga na fila em favor das irmãs de Dorothy Stang (suas irmãs religiosas, dos ruralistas e camponeses de Anapú e de representantes dos diversos movimentos que lutaram ao lado dela em sua vida e passagem pelo Brasil
As horas passavam e as notícias que vinham do tribunal eram confusas, desconexas, chegou-se a pensar no meio da tarde que o réu seria libertado por falta de provas, que havia um acordo entre a defesa e a promotoria, chegou-se a dizer que nada daquilo teria fruto e que mais uma vez não seria feita justiça.

Do lado de fora um potente carro de som colocado pela família de Regivaldo Galvão, o “taradão” como é conhecido no Pará o responsável, o mandante e mentor intelectual da morte de irmã Dorothy, este carro entoava hinos evangélicos na maior altura possível nos impedido até mesmo de conversar ou de tentar compreender as informações que nos chegavam de todo lado.

Nós, de nosso lado, com um humilde violão plugado em um Chevette 86 com pequenas caixas de som cantávamos as nossas canções, fazíamos nossas orações e nos motivávamos mutuamente como podíamos, revezando-nos no microfone do qual fiz uso por três vezes lembrando a nossa missão de sal da terra e luz do mundo, da nossa missão como cidadão e da nossa missão como homens e mulheres de bem.

Cantamos Geraldo Vandré,
Lembramos Martim Luther King em nossas camisas,
Declamamos Poesias,
Puxamos palavras de ordem,
Choramos, rezamos e cantamos por todo aquele dia...

Às sete horas da noite, completando onze horas de julgamento, as pessoas de nosso grupo que àquela altura era de algumas centenas recusavam-se a sair da fila mesmo para comer, tentando assistir ao último ato daquele espetáculo histórico.

Carros de todas as emissoras de TV, jornais e rádios com seus cabos, suas antenas, seus microfones e câmeras e equipamentos diversos nos cercavam. Não nos entrevistavam por que viam o rosto de irmã Dorothy em nossas camisas.

Por volta das nove horas ninguém mais entrava ou saía do tribunal, eram as últimas réplicas e tréplicas possíveis da defesa e promotoria.

De um lado o poder econômico dos fazendeiros do sul do Pará, os donos da terra, os reis do gado, os coronéis, aqueles que por séculos decidem a vida ou a morte nos campos brasileiros, os que mataram impunemente desde tempos remotos em nosso país.

Como mataram Chico Mendes, como mataram Padre Josimo, como mataram em Eldorado dos Carajás, como vêm matando, usurpando, roubando e mentindo.


Do outro lado freiras, padres, missionários e missionárias, mães sem terra, homens de mãos feridas do cabo das ferramentas, jornalistas de esquerda, funcionários públicos, profissionais liberais e homens e mulheres de bem, alguns pobres outros ricos, mas todos dignos, responsáveis apenas por seus pecados cotidianos, confiando apenas na justiça.

Diferentes credos e incredulidades, convicções e vocações, focando os olhos apenas em um objetivo comum, que os homens se manifestassem pela promoção do Reino de Deus na terra através cumprimento da justa justiça.


Entre esses dois mundos uma parede composta por sete membros do júri, imparcial e legitimamente representativo e legal e publicamente composto, decidiria que grupo sairia dali sorrindo ou chorando.


Perto das onze da noite o Júri se recolheu para deliberar, perdemos a noção do tempo, já não sabíamos mais há quanto tempo estávamos ali, há quanto tempo sem comer ou quanto tempo longe de casa.


O Júri retorna e o juiz lê a sentença:
- Culpado à pena máxima!



Levanto a cabeça para o relógio na parede do fórum, são 00h10min do novo dia, é primeiro de maio, é o dia do trabalhador, Dorothy teria gostado desse veredicto neste dia, Dorothy choraria conosco.


Do lado de fora nosso povo cantava:

Caminhando e cantando e seguindo a canção...
Cantavam xotes e baiões, carimbós e boi bumbás...

Um irmão da missionária assassinada vindo dos EUA se pronunciou agradecendo ao Brasil e aos brasileiros, falando em inglês, traduzido por alguém, os advogados também se pronunciaram, muitos agradecimentos e citações.


Justiça fora feita, mas eu já não cantava, encostado distante da luz das TVs que filmavam aquela pequena multidão em festa e dos frenéticos fotógrafos que disparavam flashes como tiros eu avaliava aquilo.


Todos ali fora comemoravam inclusive o Senador Jose Nery do PSOL do Pará, a quem agora devo minha admiração e exteriorizo o meu muito obrigado por ainda fazer parte da luta, mesmo com uma cadeira lá encima, no senado federal.


Eu ali, rindo um pouco da alegria de uma freira polonesa que dançava num trenzinho ao som de uma música de Alceu Valença, me veio a triste e incômoda certeza de nesse final não havia muito que comemorar.

Afinal, a missionária Dorothy estava morta, uma vida fora ceifada, uma militante fora calada, mais uma cristã havia sido martirizada...


Veio-me uma segunda consciência que prevaleceu sobre esta primeira (de que ninguém vencera), a consciência do dever cumprido.

Dever cívico?
- Talvez!

Dever religioso?
- Acho que sim!

Dever Humano?
- Certamente! Mas isso não diz tudo.

Dever divino?
- Sim, lutar pela preservação da vida humana pela manutenção da justiça e pela promoção do Reino de Deus, levando paz na terra aos homens e mulheres de boa vontade.
No final das contas isso respondeu para mim a pergunta que eu respondi de tantas formas para os outros.


- Afinal de contas, o que um Luterano estava fazendo ali?


- Estava sendo aquilo que Cristo espera de um Cristão, sendo profeta ao denunciar as mazelas do mundo e diácono ao servir o irmão, sendo irmão ao servir o próximo e o próximo ao dar força ao irmão.

Além disso:
- O sangue dos mártires é semente, os ideais seguem vivo, o povo naquela praça, as pessoas órfãs de Dorothy precisavam de esperança e fé, e era isso que nós ali, juntos representávamos para eles.

Esperança e fé.


As pessoas continuavam comemorando, quando os avisos começaram a ser dados e o primeiro deles foi o de que o ônibus de São Luis estava na praça pronto pra partir, despedi-me de quem encontrei no caminho, abracei, cumprimentei, beijei rostos que mal conhecia.

Embarcamos naquela madrugada de 1º de maio todos cansados, muitos com fome, alguns com sono, mas nenhum, nenhum de nós, católicos, um protestante (eu), um agnóstico marxista (o jornalista ao meu lado, antigo companheiro de lutas), nenhum de nós voltou decepcionado.


Lembrei da frase de Luther King nas camisas:
- O que me assusta não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons!

Que bom que nós luteranos não ficamos calados, agora todos sabem, o que fomos fazer lá.

Como entoamos dezenas de vezes em Belém do Pará:

- Dorothy Presente...
- Dorothy Semente.

- Dorothy Semente...
- Dorothy Presente.

- Dorothy Vive...
- Sempre, sempre, sempre.